CIRTA - Kafka e a boneca viajante (livro de Jordi Sierra)

Um olhar sobre a maternidade a partir da literatura.

Kafka e a boneca viajante (livro de Jordi Sierra)

Acabo de ler o livro de Jordi Sierra i Fabra sobre as cartas (nunca encontradas) de Kafka para uma menina que acabara de perder sua boneca. Fui levada a refletir sobre a relação mãe e filho(a) e faço um paralelo com a relação de Elsi e Brígida.

A relação de uma menina com sua boneca é das mais fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia

Ao se deparar com o sofrimento de uma menina que acaba de perder sua boneca, Kafka escreve cartas, para que a dor da perda e da separação possa, de alguma forma, ser elaborada pela menina.

Te recolher para sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído

Chico Buarque – Uma canção desnaturada

Elsi não suportava a dor por ter perdido sua boneca, gostaria de poder carregá-la para sempre em seus braços, como na canção de Chico Buarque.

Segundo Lacan o desejo materno tem a propriedade de lançar o sujeito para a vida ou colocá-lo no lugar de tamponar a falta da mãe. A mãe deseja ser tudo para o filho e deseja que o filho seja tudo para ela. Mas qual seria a medida certa desse amor? Como cuidar, proteger e ao mesmo tempo conceder o passaporte para o mundo? Como Elsi, a menina que perdeu sua boneca, pode conceder o passaporte para Brígida, a boneca viajante?

José Saramago, nos diz:

Devemos criar filhos para o mundo. Torná-los autônomos, libertos até de nossas ordens. A partir de certa idade, só valem conselhos[…] ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo tipo de dor, principalmente, a incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo”.

Ao longo do desenvolvimento de uma criança são inúmeras as pequenas separações: desmame, desfralde, ida para escola, volta da mãe ao trabalho. A mãe deve poder ausentar-se, para que na falta a criança possa internalizar a mãe e mesmo em sua ausência tenha a sua presença, através do processo de simbolização.

A separação de um filho exige um trabalho psíquico por parte da mãe. Sabemos como sofrem algumas mulheres quando têm que retornar as suas atividades profissionais após a maternidade. Nas páginas desse livro, Kafka tenta oferecer a Elsi a oportunidade de realizar esse trabalho psíquico, elaborando a perda de sua boneca tão amada, inseparável e “tão sua”. Como poderia Brígida ser feliz longe dela?

Sabe, sei de bonecas que nunca fazem sua viagem. Têm medo. Ficam com suas meninas, mas não por amor a elas, ao contrário: ficam por medo. E o medo é um coisa ruim e perversa que limita a liberdade. Quem tem medo não vive, agoniza. Brígida teve em você a melhor professora. Você a ensinou a não ter medo e a enfrentar a vida quando foi preciso. Por isso acho que deveria se sentir muito orgulhosa.”

E Kafka então se pergunta… “De quantas cartas Elsi precisaria para ser feliz? E Brígida, de quantas para se libertar? E já em suas últimas cartas, tentando preparar Elsi para a despedida…

um dia, quando eu deixar de lhe escrever, nós duas vamos saber que nunca chegaríamos tão longe uma sem a outra. Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o tempo não existe para além do amor. Sei que você chorou quando eu fui embora. Mas quero que ria e cante e sempre pense que o futuro não é um problema a resolver, mas um mistério a descobrir”.

O amor é um sentimento que cresce, invade, transforma e carrega em si um pouco de devo(ra)ção. Querer de dois fazer UM. Completar-se, fundir-se… Amor de mães e filhos, de Elsis e Brígidas. Buscamos de forma incansável um objeto que dê conta de nos suprir, nos saciar, nos completar. Elsi perde esse objeto, sua boneca tão amada e inseparável. Na verdade, a viagem acontece para as duas, uma viagem sobre o saber lidar com a falta e com a perda do objeto amado.

Enfim, a despedida:

Elsi, te amo muito. Obrigada por me dar a vida e a liberdade para vivê-la. Seja feliz.”

Ass.: Brígida.

Texto de Paula Lacerda
Psicóloga/Psicanalista
@paulapsicanalista

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